Reza a lenda que, em determinado momento, durante as décadas de 1970 e 80, a grande maioria dos chineses não tinha ideia do nome do presidente da França. Mas sabiam muito bem quem era Pierre Cardin.
Primeiro estilista francês – apesar de naturalizado, e de origem italiana – a se preocupar com a democratização do vestuário, a renovar o empoeirado guarda-roupa masculino e a apostar em diversidade racial nas passarelas, Cardin foi também pioneiro ao fundar um império multinacional fundamentado, essencialmente, na promoção de sua assinatura. Isso, muitas décadas antes de alguém sequer ter mencionado o termo globalização.
De fato, não faltam credenciais para posicionar Pierre Cardin, morto no mês passado aos 98 anos, no Olimpo da moda internacional. Faltava, talvez, um grande filme. Tarefa a qual se entregaram, com afinco, e em plena pandemia, os diretores norte-americanos David Ebersole e Todd Hughes – duo responsável por Room 237, Mansfield 66/67 e Love Cher -, munidos de assumida admiração, muito entusiasmo e, o mais importante, acesso exclusivo aos arquivos do estilista.
O resultado, condensado no documentário O Império de Pierre Cardin (House of Cardin), produção franco-americana Imovision, tem estreia prevista para esta quinta, 14, em São Paulo e outras capitais.
Pode não ser a obra definitiva sobre a vida do estilista. Pode ser generosa demais com as intenções do homem Cardin e relevar muitas de suas contradições. Mas, construída com base em vasta documentação e depoimentos de personagens que direta, ou indiretamente, fizeram parte do universo do estilista – dos ex-pupilos Jean Paul Gaultier e Philippe Starck, a estrelas internacionais como Naomi Campbell, Sharon Stone e Dionne Warwick -, pode proporcionar boas surpresas para quem pretende adentrar o vasto universo do estilista.
Conforme comprova esta entrevista, concedida por telefone ao Estadão, pela dupla de diretores, direto de Palm Beach, na Califórnia.
Como surgiu a ideia de um documentário sobre Pierre Cardin?
Ebersole: Bem, costumo dizer que esse filme nasceu do amor que sempre tivemos pelas criações de Cardin. Somos colecionadores de seus móveis e objetos. Apreciamos, sobretudo, seus trabalhos da chamada Era Espacial, da época em que o homem tinha acabado de chegar à Lua. Claro que conhecíamos suas roupas, mas devo dizer que foi sua produção como designer que nos incentivou a mergulhar em seu universo criativo. A primeira vez que o vimos foi durante uma visita ao Museu Pierre Cardin, em Paris, mas foi apenas um encontro. Um ano depois, o reencontramos novamente em Paris – ele já sabia que éramos documentaristas, mas, apesar de sempre ter dito não a filmes biográficos, ele acabou se interessando pela ideia e deu o OK. Devo admitir que, só quando começamos a trabalhar, tivemos a exata noção da incrível história que tínhamos para contar e da sua importância para a moda.
O filme revela aspectos da produção de Cardin menos conhecidos do grande público, como sua atuação como designer e a colaboração com o designer Philippe Starck, por exemplo. Como veem a contribuição dele para a área?
Ebersole: Penso que o mais interessante da visão de Cardin é que ele pode ser visto por inteiro. Como uma espécie de experiência estética, que vai da roupa à arquitetura, do carro aos óculos. A partir dele, a questão se deslocou do gosto ou não disso. Não era mais o eu gosto ou não gosto de uma roupa de Dior. Representou um passo além. Passou a ser quero viver no estilo Cardin. E, nesse sentido, ele foi mais uma vez pioneiro. Introduziu a noção de estilo de vida, tal qual a concebemos hoje
Logo no início do filme, Rodrigo Basilicati (sobrinho-neto do estilista e diretor artístico do Espaço Pierre Cardin, em Paris) diz que o futuro previsto por ele ainda não chegou. Está por vir Concordam com essa ideia?
Hughes: Sim, faz todo sentido. Muito antes de todos, Cardin previu um mundo muito próximo do que vivemos hoje, se pensarmos, por exemplo, na globalização. Por outro lado, previu um mundo mais harmônico, de maior respeito por todas as pessoas e por todas culturas. Independentemente de suas origens e preferências O que, convenhamos, ainda está por vir. Aliás, espero que chegue logo (risos).
Ebersole: Concordo. E é interessante observar isso, principalmente diante da realidade distópica que vivemos hoje. Cardin era um utopista, OK. Mas muitas de suas ideias se transformaram em questões essenciais para nós. O desejo de democratizar as oportunidades, de cada um poder expressar livremente o que pensa, de incluir todas as nações do mundo ou, ao menos, de prestar atenção a cada uma delas, são hoje demandas globais. De certa forma, penso que apenas agora começamos a vivenciar isso.
Voltando ao documentário, ao contrário de outras produções do gênero, nas quais a vida privada de estilistas como Yves Saint Laurent, por exemplo, é apresentada lado a lado a suas carreiras, isso não acontece em O Império de Pierre Cardin. Estou certo?
Ebersole: Acredito que sim. Principalmente se observarmos o homem Cardin, para quem o trabalho sempre ocupou a posição de primeiro amor (risos). Mas é claro, a vida privada dele existia e era vivida da forma que procuramos apresentar no documentário: de maneira tranquila e feliz. Mas, ao contrário de Saint Laurent, por exemplo, que ligava sua vida à sua imagem e, até mesmo, à de sua marca, para Cardin não fazia sentido se colocar à frente de seu trabalho. O que não quer dizer, naturalmente, que ele não tenha vivido com Andre Oliver, por exemplo, um tipo de vida e colaboração bastante semelhante à que tiveram Saint Laurent e Pierre Bergé. Era como ele sentia e, por isso, não fazia sentido apresentá-lo de outra forma.
Realizar este documentário os inspirou a realizar outros tendo como foco o mundo da moda?
Hughes: Foi um trabalho inspirador. Estamos inclusive pensando em fazer outro documentário. Desta vez, sobre um amigo, Michael Schmidt. Ele é fashion designer e trabalhou com todas as pessoas que você pode imaginar: Deborah Harry, Grace Jones, Cher.
Ebersole: Diria que nosso interesse não é pela moda, mas por criadores pioneiros. Não só na moda, mas em toda e qualquer área Acabamos de concluir um documentário sobre Trini Lopez, cantor dos anos 1960, que faleceu recentemente. Está em fase de pós-produção.
E, finalmente, Cardin viu o filme? Quais suas impressões?
Hughes: A primeira vez que ele viu, em sua totalidade, foi durante o Festival de Veneza, em setembro passado. Quando acabou, ele foi aplaudido de pé, levantou-se e disse que o filme fazia pensar, era artístico e totalmente verdadeiro. Gostamos de tudo o que ele falou. Claro. Mas foi o “totalmente verdadeiro” que nos fez especialmente felizes.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.